Este site utiliza cookies

Salvamos dados da sua visita para melhorar nossos serviços e personalizar sua experiência. Ao continuar, você concorda com nossa Política de Privacidade, incluindo a política de cookie.

Novo RLI
x
ExitBanner
O leite no mundo

Desvendando a terra do leite

Desvendando a terra do leite

Texto: Marcelo Pereira de Carvalho

Inicio.jpg (732 KB)

Nos últimos anos, a Nova Zelândia tem sido retratada no Brasil como uma espécie de paraíso do leite: uso inteligente dos recursos disponíveis, baixo custo de produção, sistemas produtivos bem definidos, organização da cadeia produtiva e alta qualidade da matéria-prima: um modelo a ser não só admirado, mas seguido pelo Brasil, capaz de colocar o país novamente no rol dos grandes exportadores, como é a Nova Zelândia, principal exportador mundial de leite. Com efeito, a Nova Zelândia é realmente a terra do leite.

O faturamento da Fonterra, sua maior empresa, e onde tivemos a oportunidade de assistir a uma apresentação na simbólica sala do conselho administrativo (foto 1), é cerca de 8 vezes maior do que a segunda maior empresa de toda a economia do país.  O leite representa nada menos do que 25% das exportações da Nova Zelândia, e as melhores áreas ou já foram ou estão sendo convertidas para o leite, a partir da criação de ovinos, gado de corte e mesmo agricultura, que via de regra não consegue competir. O leite tem sido, de certa forma, a galinha dos ovos de ouro desse país de clima, em geral, úmido, ideal para a produção de forragem. A sala de administração da Fonterra, por assim dizer, pode ser considerada os metros quadrados mais importantes da economia do país.

1.jpg (741 KB)

A visita que mencionei ocorreu agora em meados de março, quando tivemos a oportunidade de conhecer com relativa profundidade a realidade do leite na Nova Zelândia, a partir de visitas a produtores, cerca de uma dúzia de palestras em universidades e empresas, e conversa com técnicos de destaque no setor. O programa que fizemos, e do qual participaram 22 pessoas, nos permitiu tirar uma fotografia do momento atual e, mais do que isso, gerar massa crítica para entender as profundas transformações pelas quais passa a atividade leiteira nesse país. Sem dúvida, esse é o primeiro e principal aspecto que pudemos atestar: o setor lácteo da Nova Zelândia é extremamente dinâmico e vem respondendo à nova conjuntura mundial, marcada pela elevação dos preços em 2007 e pela crescente volatilidade. Talvez em nenhum outro país do mundo a elevação dos preços dos lácteos tenha causado tantas mudanças. E, como todas as transformações, há opiniões divergentes, possibilidades distintas de futuro e incertezas – em algum grau semelhantes às que temos por aqui.

 

Eficiência, profissionalismo e empreendedorismo

A primeira impressão ao se chegar a Nova Zelândia é que as coisas funcionam. De fato, esse país de pouco mais de 4 milhões de pessoas leva tudo o que faz muito a sério, e no leite não poderia ser diferente.

Nosso grupo ficou muito impressionado com a infra-estrutura disponível – estradas, equipamentos, pessoas, serviços. Os caminhões de coleta de leite (foto 2) são o sonho de produtores e indústrias do Brasil. A coleta de leite é feita de forma automática, por amostradores, e com medidor de vazão.  Ao chegar à propriedade, o motorista imprime os dados da coleta do dia anterior – gordura, proteína, volume de leite, células somáticas, kg de MilkSolids (gordura + proteína) - foto 3).

2.jpg (721 KB)

3.jpg (638 KB)

A Fonterra capta 230 litros de leite para cada kilômetro rodado, 6 vezes mais do que as empresas mais eficientes no Brasil. A comparação com o Brasil, no entanto, é injusta. A logística deles facilita muito, sem contar a qualidade das estradas. A foto 4 mostra os pontos de coleta de uma das regiões – os pontos pretos são produtores de leite.  Em cada caminhão, uma tela com o roteiro a ser preenchido, sempre no asfalto ou, na pior das hipóteses, em um cascalho melhor que muitas rodovias brasileiras.

4.jpg (665 KB)

A eficiência também pode ser vista na automação e na gestão de informação. Todos os produtores que visitamos dispõem de uma vasta estrutura de informação e identificação eletrônica dos animais.  O Milk Hub, foto 5, é um destes sistemas.

5.jpg (660 KB)

O profissionalismo também é algo que impressiona. Uma estagiária brasileira nos contou que, às 4 da manhã, houve um problema na ordenha que impossibilitava o prosseguimento da atividade. Ela ligou para o proprietário que estava em casa, este ligou para a empresa e, em cerca de 20 minutos, naquele horário, havia um profissional solucionando o imprevisto.  É bem possível que os demais serviços também operem nesse grau de profissionalismo – com efeito,  muita coisa é terceirizada, como colheita de volumoso para silagem e a inseminação, normalmente feita com sêmen fresco (em um processo que permite a viabilidade por 4 dias) por um profissional da LIC, principal central do país, e que insemina a maior parte das vacas (75% das vacas são inseminadas).   

Um outro aspecto muito evidente é o estímulo ao empreendedorismo no país, onde o sucesso é valorizado. Cerca de 30% das vacas são ordenhadas no sistema de sharemilker, no qual o sharemilker entra com o trabalho e com as vacas, ao passo que o produtor entra com a terra, equipamentos e fertilização do pasto. A renda do leite é dividida 50/50 (no sistema mais comum, embora existam diferentes configurações).  O sharemilker é uma maneira viabilizar a sucessão, resolver o problema da mão de obra qualificada e atrair empreendedores para o negócio. A sociedade para produção é uma característica bastante interessante do leite neozelandês: vários produtores que visitamos possuem um sócio não operacional, principalmente na Ilha Sul, onde a atividade mais cresce.

Dois produtores que visitamos chamaram a atenção nesse quesito. Um deles foi o casal Jason e Lisa Suisted, que ganhou o prêmio de Sharemilker do ano de 2012. O outro é Craig e Helen Elliott, que começaram como sharemilkers há cerca de 20 anos e hoje possuem 7.000 vacas em lactação.

6.jpg (748 KB)

Jason (foto 6) era carpinteiro; Lisa, cabeleireira. Hoje, depois de 12 estações produtivas, a quinta como sharemilkers, ordenham mais de 450 vacas e obtêm retorno sobre o capital investido de 40% ao ano. O próximo passo é comprar uma fazenda própria. Veja a missão deles:

“Estamos no negócio de agricultura. Nosso objetivo é oferecer uma boa vida para nossa família e um ambiente saudável para nossas crianças, para que possam viver a vida, e que estejamos próximos a elas enquanto vivem. Queremos usar práticas modernas de produção de leite para atingir um crescimento de pelo menos 30% no patrimônio líquido por ano. Isso nos fará atingir nosso objetivo de ter nossa própria fazenda. Faremos isso por meio de trabalho duro e dedicação na atividade leiteira, com honestidade, integridade e lealdade com nossa equipe”.

Entre os objetivos concretos: aumentar de 450 para 650 a 1000 vacas em 2 anos; aumentar o patrimônio líquido para NZ$ 2 milhões em 2014; manter os custos operacionais entre os 25% mais baixos entre os sharemilkers de Waikato (principal região produtora), em não mais de 55% da renda bruta.

Fica evidente que os Suisted não brincam em serviço. O mesmo se aplica a Craig Elliott (foto 7), que começou economizando aos 8 anos de idade, vendendo perus, e hoje, aos 43, possui 7.000 vacas com um sócio, na região de Canterbury, na Ilha Sul da Nova Zelândia.

7.jpg (634 KB)

A cultura do empreendedorismo e do profissionalismo permeia a produção de leite do país. Todos têm os indicadores financeiros na ponta da língua, além dos dados técnicos. A impressão que se tem é que ninguém brinca de produzir leite. É um negócio, e como negócio, precisa dar dinheiro. Até porque, se não der, o banco toma.

 

Endividamento para alavancar o crescimento

Assim como nos Estados Unidos, o financiamento é a mola propulsora do crescimento da atividade. É relativamente normal o produtor dever 50% do capital investido, pagando mensalmente os juros dessa dívida. O problema é que, com o “boom” do leite em 2007 e com a relativa escassez de terras (considerando que é um país pequeno), o capital necessário para expandir se multiplicou nos últimos anos.  Uma área formada para leite  (com pasto e equipamentos) em Canterbury, na Ilha Sul, pode sair por até R$ 80 mil o hectare; na Ilha Norte, se for perto de Auckland, pode atingir R$ 140 mil! Mesmo nas demais áreas da Ilha Norte, valores de R$ 70-80 mil/ha são comuns. A rigor, conforme os dados apresentados pela professora da Massey University e diretora da Fonterra, Nicola Shadboldt, o negócio de valorização da terra tem dado retorno mais alto do que o negócio de produção de leite.  E isso, claro, é uma preocupação, porque coloca uma pressão adicional sobre o retorno da atividade de produção em um momento no qual a terra parar de subir.

Em função do valor da terra, o nível de dívida é significativo. No total, os produtores devem cerca de R$ 50,1 bilhões para uma produção anual de 19,129 bilhões de kg. Em produtores mais alavancados, o custo da dívida chega a aumentar em 50% o custo de produção: supondo um custo operacional médio de NZ$4/kg de sólidos (gordura e proteína), vimos produtores que pagam mais NZ$ 1,5 a 2,00/kg de serviço da dívida. Colocando em reais, e considerando um leite com a quantidade de gordura e proteína do leite brasileiro, o custo operacional seria nesse caso de R$ 0,45/kg de leite brasileiro, mais R$ 0,18 a R$ 0,23 de dívida, totalizando R$ 0,63 a 0,68/kg, sem a remuneração do proprietário. Como disse Jeremy Casey (foto 8), produtor que acabou de inaugurar sua fazenda em Canterbury, “se tivermos um pagamento de NZ$ 6,50, nos sobra NZ$ 0,50/kg de sólidos para comprar roupas”.

8.jpg (702 KB)

O endividamento coloca a produção de leite da Nova Zelândia em uma espécie de corda bamba: se os preços caírem aos níveis históricos ou algo próximo a eles, a conta não fecha. Essa realidade faz com que o custo do leite neozelandês fique mais próxima a de outros países como os Estados Unidos, ainda que a produção seja, em grande parte, a pasto.  Para os produtores que possuem a terra, a situação é melhor, mas o custo de oportunidade do capital investido continua existindo.

O aumento do preço da terra e o aumento do preço do leite (uma coisa é receber US$ 0,20/kg; a outra, US$ 0,40, como ocorreu muitas vezes a partir de 2007) forçam uma maior produtividade por área. Nos sistemas mais intensivos, os produtores têm obtido mais de 2.000 kg de sólidos por hectare, lembrando que sólidos na NZ é igual a gordura e proteína, que equivalem a 8,6% do leite. Assim, 2000 kg de sólidos por hectare, equivalem a 23.000 kg/ha do leite neozelandês, ou 29.000 kg se fosse leite brasileiro, com 6,8% de gordura + proteína.  Observação: nessa conta, não entra a área para bezerras e novilhas, geralmente criadas em uma outra propriedade.

Em função disso (preço do leite e da terra), há uma mudança em curso no sistema de produção, que envolve mais equipamentos e custos. A Nova Zelândia tem 5 sistemas de produção, de acordo com o nível de suplementação:  o sistema 1, exclusivo a pasto e que representa menos de 10% das fazendas; até o sistema 5, com pelo menos 30% da dieta não proveniente do pasto (silagem de pasto é considerada pasto; silagem de milho entra nesses 30%). Todos os especialistas consultados disseram que cada vez mais há produtores subindo na escala de 1 a 5. E, segundo um especialista da Massey University, em uma pesquisa com produtores, o número real era, em média, um ponto acima do que os produtores achavam que tinham, indicando que estão usando mais suplementos do que imaginavam. Os dados da Massey University entre 2006/07 e 2008/9 mostram que, nos anos de preços elevados, os sistemas mais intensivos foram mais rentáveis, mas muitos acham que a dependência de suplementos tira a flexibilidade do sistema e deixa-o muito vulnerável a preços que podem cair - alguma semelhança com o Brasil?

Aliás, é interessante como a discussão sobre sistemas está quente nesse momento. Há quem diga que a Nova Zelândia deve voltar atrás e trabalhar com mais pasto. Na outra ponta, há quem considere que, em um futuro não muito distante, as vacas serão todas confinadas e ordenhadas por robôs. Um dos técnicos nos mencionou um produtor norte-americano cuja vaca mais produtiva chegou a produzir 100 kg por dia se auto-ordenhando 6 vezes em um sistema robotizado. Ele fez as contas a chegou à receita de NZ$ 50 proporcionada diariamente por esse animal. “Nunca vi por aqui uma vaca que desse NZ$ 50/dia”, disse. O fato é que, como ele, muitos estão pensando em receita e lucro por área, ao invés de custo mínimo. Nesse sentido, vimos muito mais silagem de milho do que esperávamos, e mesmo no sistema a pasto, há novidades, como o fornecimento de pasto roçado para as vacas no intuito de aumentar a ingestão de volumoso.

Uma das razões apontadas pelos que acreditam no caminho do confinamento é a pressão ambiental. No ponto onde a vaca urina, a dosagem de nitrogênio é equivalente a 1.000 kg de uréia/ha. Nas épocas mais úmidas do ano, uma parte significativa disso acaba percolando, atingindo lençol freático. Em função disso, já há quem recomende confinar, ao menos nos meses mais úmidos.  Há produtores que estão sendo levados à justiça em função dos problemas ambientais, cuja pressão é cada vez maior. Por outro lado, o confinamento implica em trazer mais nutrientes de fora para dentro da propriedade, o que pode elevar o problema ambiental, porém com características diferentes. Além disso, o custo não é barato em um país que produz poucas alternativas de suplementação. O farelo de dendê, importado da Malásia, e que tem 13% de proteína, não sai, em média, por menos de R$ 420/tonelada; o farelo de algodão está cotado a R$ 1.100, e a silagem de milho custa cerca de R$ 670/tonelada de matéria seca... Independentemente do caminho a se seguir, o fato é que há mais equipamentos e estrutura do que imaginávamos, como pode ser visto nas fotos 9 e 10.

IMG_9523-1.jpg (984 KB)

10.jpg (727 KB)

Uma outra razão possível para o confinamento é a ausência de mão de obra qualificada para manejar o pasto. Não mais do que 300 profissionais agrícolas são formados  a cada ano nas duas universidades, a Massey, na Ilha Norte, e a Lincoln, na Ilha Sul. Manejo de pastagens no nível necessário é algo que requer alguém que conheça o sistema, e nesse ponto bons gerentes chegam a ganhar mais de R$ 250 mil por ano, mais do que professores universitários. Vimos muitos técnicos brasileiros trabalhando como estagiários ou mesmo como gerentes de fazendas, como é o caso de Sandro, que trabalha em uma das fazendas dos Elliotts.

Há, ainda, um outro investimento que precisa ser feito pelos cooperados da Fonterra. Para entregar o leite para a cooperativa, o produtor precisa pagar o equivalente a NZ$ 7 por cada kg de sólidos entregues no ano. Esse montante  representa a integralização das cotas da cooperativa. Assim, um produtor que produza, por exemplo, 100.000 kg de sólidos no ano (1,16 milhão de litros/ano – 3.185 kg/dia em média), precisa capitalizar a empresa em cerca de R$ 1,17 milhão. Ou, caso já seja sócio, este é o valor de suas cotas, que agora podem ser transacionadas entre cooperados.

Em função disso, a tentação para muitos produtores é significativa: vender as cotas e investir em uma nova fazenda, muitas vezes em outra região de terra mais barata (preferencialmente no Sul da Ilha Sul, onde há muito ainda a converter para leite), fornecendo o produto para umas das outras empresas do país: as cooperativas Tatua e Westland, ou as empresas privadas Open Country Cheese (foto 11), e Synlait (foto 12).

11.jpg (601 KB)

12.jpg (667 KB)

O gerente de captação de leite de uma das empresas novatas me disse que a base de fornecimento de leite deles está crescendo e que possuem bons produtores, talvez alguns dos mais inovadores, já que não é fácil deixar a estrutura da Fonterra e acreditar em uma nova entrante.

Nesse cenário de mudanças, sobram desafios para a gigante Fonterra (foto 13), que embora domine amplamente, com 89% do leite, não tem mais os 96% de outrora.

9.jpg (689 KB)

Quanto o país pode crescer?

Essa é uma questão muito interessante e atual ao se falar de Nova Zelândia. Na Ilha Norte (foto 13), que concentra 64% da produção, nos últimos 10 anos, não houve crescimento. As áreas melhores estão ocupadas e a possibilidade de irrigar mais é pequena, já que a água já está em grande parte comprometida. Já na Ilha Sul (foto 14), há ainda o que crescer, principalmente no Sul do país, onde a irrigação não é necessária. Em função disso, trabalha-se com a possibilidade de um crescimento médio de 2% ao ano, a não ser que haja mudança significativa no sistema de produção,elevando a lotação, que hoje atinge entre 3,5 e 4,0 vacas por hectare/ano, cada uma produzindo até 500 a 550 kg de sólidos (considerando os níveis mais elevados).

Acredito que nosso grupo tenha voltado da viagem com uma visão mais completa, não só do que é a produção na Nova Zelândia, dos desafios, das oportunidades, dos possíveis caminhos, mas também dos nossos próprios desafios, oportunidades e possíveis caminhos.  Devemos refazer a viagem em setembro de 2014, quando as pastagens estarão em pleno vigor. Sugiro que todos que possam ir, se planejem, pois é um local que vale muito a pena visitar.

PS: Acesse as estatísticas neozelandesas acessando o QR Code a seguir.

14.jpg (12.41 MB)

15.jpg (707 KB)

16.jpg (798 KB)

Compartilhar:


Comentários

Enviar comentário


Artigos Relacionados