O desafio de planejar a alimentação na pecuária leiteira
Requer a integração de conhecimentos zootécnicos, agronômicos e sobre o uso dos alimentos.
A célebre frase do escritor Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”, ensina importantes lições: o navegador que lança seu barco ao mar deve ter um plano de rota detalhado por escrito. Sabe onde quer ir, quando vai sair, quando pretende chegar e qual curso tomar. Pode ocorrer tempestade ou calmaria no caminho que atrase a viagem (viver não é preciso), mas sem o plano de navegação, o barco estaria totalmente à deriva (navegar é preciso). Nas fazendas leiteiras, essa analogia também se aplica.
É comum que ocorram desvios em relação ao planejamento e na maioria dos casos, eles se concretizam. No entanto, se não houver compromisso dedicado ao planejamento, especialmente no que diz respeito à alimentação, a fazenda pode se encontrar em situações desafiadoras. Imagine, por exemplo, esgotar o estoque de forragem no mês em que o preço do leite atinge seu pico anual. Certamente, essa não seria uma situação desejável para qualquer fazenda.
As bases da construção do planejamento forrageiro na fazenda
Os meses de junho, julho e agosto representam época propícia para o planejamento da atividade leiteira: observam-se os indicadores de produção e reprodução do rebanho e realiza-se o exercício de projeção para o futuro. Ou, pelo menos, para o próximo ano agrícola. Nesse período, o governo lança políticas de financiamento para o setor, o que possibilita ao produtor captar recursos para a safra. Além disso, historicamente, os insumos para a produção de culturas anuais apresentam preços mais atrativos entre junho e setembro. Na pecuária leiteira, é o momento certo para responder a duas perguntas: quantos animais precisam ser alimentados no próximo ano? E quanto de alimento precisará ser produzido e estocado para esse período?
Essas duas perguntas não são tão fáceis de serem respondidas de forma precisa, mas serão apresentados alguns passos fundamentais para o planejamento da alimentação da fazenda leiteira de maneira confiável. O foco será o planejamento da necessidade de forragens, pois são os alimentos que normalmente se produzem e estocam dentro da própria fazenda para um longo período (os alimentos concentrados e subprodutos são mais comumente adquiridos ao longo do ano). No entanto, a lógica que será abordada aqui pode ser utilizada para todos os alimentos utilizados pelo rebanho.
1- Mantenha registro zootécnico completo e atualizado
A maioria das fazendas mantém registros de partos, coberturas ou inseminações e rotina de diagnóstico de prenhez. No entanto, se o objetivo é projetar o rebanho, ou seja, acompanhar sua evolução, esses controles básicos não são suficientes. A Figura 1 apresenta um exemplo de planilha de evolução de rebanho utilizada pela Equipe Leite do Rehagro para projetos em fazendas leiteiras. Nela, estão listados 26 indicadores de produção e desempenho reprodutivo necessários para projetar o rebanho com assertividade a médio prazo. Alguns desses indicadores serão explicados brevemente, assim como a coleta de dados necessária na fazenda para calculá-los.
a) Mortalidade e descarte involuntário de vacas: para calcular esse indicador, é necessário manter o registro de todos os animais adultos que deixam o rebanho, seja por venda, abate ou mortes. Projetar a saída de animais adultos é importante para determinar quantas primíparas precisarão entrar em lactação para reposição. Se o número de partos previstos de novilhas for maior do que o necessário para repor o rebanho adulto, então a fazenda tem condições de expandir o rebanho em lactação. Como resultado, a necessidade de forragem para as vacas também aumentará, e a fazenda terá que produzir mais alimento para o ano seguinte;
b) Mortalidade na recria: é fundamental registrar quantos animais jovens morrem e em que idade ocorre a mortalidade, em relação ao número total de bezerras nascidas no ano. Em outras palavras, quantas bezerras nascidas na fazenda não conseguem se tornar vacas devido a óbitos prematuros? Esse indicador está diretamente relacionado com a reposição do rebanho adulto: a fazenda dispõe de animais em quantidade sufi ciente para substituir as vacas que saem do rebanho?
Se o desempenho reprodutivo for fraco e a mortalidade de animais jovens for elevada, consequentemente, o rebanho adulto diminuirá ao longo do tempo devido à falta de reposição (ou a reposição terá de ser adquirida). Por outro lado, em uma situação em que os indicadores de reprodução são positivos, como taxa de prenhez elevada em vacas e novilhas, e a mortalidade de animais jovens é baixa, a fazenda pode contar com número de animais superior ao necessário para repor o rebanho adulto, criando a recria excedente. Os animais da recria excedente podem ser direcionados para aumentar o rebanho produtivo ou serem disponibilizados no mercado para venda.
A quantidade de nascimentos e a proporção de fêmeas nascidas, juntamente com a taxa de mortalidade, têm influência direta no estoque de animais jovens da fazenda. Fazendas que mantêm grande estoque de animais jovens devem se precaver ao planejar a produção de forragem para atender essa categoria;
c) Ganho de peso em bezerras e novilhas: para determinar o ganho de peso das bezerras e novilhas, é essencial realizar pesagens periódicas desses animais. O ideal é pesar todos os animais jovens mensalmente, desde o nascimento até o momento do primeiro parto. Embora possa parecer um processo trabalhoso, essas informações permitem projetar o ganho de peso dos animais jovens, comparando-o com as metas estabelecidas para a fazenda e realizar ajustes quando necessário.
No caso das fêmeas bovinas, é importante que atinjam, no mínimo, 85% do peso à maturidade (o peso médio de animais com três partos ou mais, no terço médio da lactação) antes do primeiro parto. Ao conhecer o ganho de peso em cada fase da recria, é possível projetar quando os animais atingirão o peso ideal para o parto e, consequentemente, quando deverão iniciar o processo de reprodução. Fazendas com baixo ganho de peso na fase de recria frequentemente enfrentam o problema de novilhas que demoram a chegar ao parto, resultando em excesso de animais dessa categoria e maior demanda por alimento.
Com o planejamento do peso ideal para o parto, a fazenda pode ajustar a dieta da recria, melhorar o ganho de peso e reduzir consistentemente a idade ao primeiro parto. É importante ressaltar que melhorias na alimentação das bezerras terão impacto no estoque de vacas e animais jovens da fazenda ao longo de dois anos, sendo um investimento de médio prazo. Os demais indicadores da planilha derivam da eficiência reprodutiva do rebanho, que inclui o intervalo entre partos, combinada com o potencial produtivo do rebanho, como o período de lactação e a produção média por vaca, além dos aspectos relacionados à sanidade e ao conforto animal, como as perdas de prenhez e os casos de natimortos. Em fazendas que mantêm a rotina reprodutiva bem gerenciada, é possível obter esses indicadores com alta confiabilidade.
COM O PLANEJAMENTO DO PESO IDEAL PARA O PARTO, A FAZENDA PODE AJUSTAR A DIETA DA RECRIA, MELHORAR O GANHO DE PESO E REDUZIR CONSISTENTEMENTE A IDADE AO PRIMEIRO PARTO
O intervalo entre partos projetado e o período de lactação são particularmente relevantes, pois influenciam diretamente a proporção de animais adultos em produção. Todos esses números têm como objetivo final o planejamento anual do estoque de animais adultos e de animais em fase de recria na fazenda. Isso possibilita determinar com precisão as necessidades de alimento para o rebanho ao longo do ano.
2- Adote abordagem realista para estimar o consumo de forragem
Quanta forragem as vacas em lactação consomem? E quanto consomem as vacas secas, as novilhas de 400 kg ou as bezerras recém-desaleitadas? Sem respostas para essas perguntas, a projeção do estoque animal realizada pelos produtores terá pouca utilidade.
Em relação à silagem de milho, a resposta mais comum para a primeira pergunta costuma ser: “as vacas em lactação consomem 30 kg de silagem de milho por dia”. No entanto, essa é apenas uma estimativa. Para que o planejamento forrageiro seja mais preciso, é fundamental expressar a exigência de forragem em quilos de matéria seca (MS), em vez de matéria natural (MN), como mencionado anteriormente. As vacas em lactação geralmente consomem cerca de 1,8% do seu peso em quilos de MS de forragem. Por exemplo, uma vaca de 600 kg consumirá 10,8 kg de MS de silagem de milho. Para novilhas, a proporção de 1,8% do peso também é realista. No entanto, o consumo de forragem pode ser menor para bezerras desaleitadas, que têm entre 120 e 180 kg de peso.
Nesse contexto, podem surgir duas dúvidas: por que expressar a exigência de forragem em MS e como convertê-la para MN, a fim de gerenciar a produção e o estoque de alimento na rotina diária da fazenda? Para responder a essas questões, a Figura 2 apresenta o conceito de MS.
A barra azul representa a quantidade de água, a barra verde representa todos os nutrientes contidos na matéria seca e a barra marrom representa a proteína bruta, também contida na matéria seca.
É importante compreender que 30 kg de silagem de milho podem não fornecer a mesma quantidade de nutrientes, dependendo do teor de água presente na silagem. Na Figura 2, a barra representa 30 kg de silagem de milho. A silagem de milho “A” possui 30% de MS, o que significa que 70% é composto por umidade. Dos 30 kg, 21 kg são água e apenas 9 kg são nutrientes efetivamente úteis para a vaca, como a proteína bruta. A proteína bruta corresponde a 10% da MS, o que significa que nos 30 kg de silagem “A” tem-se 900 g de proteína bruta.
Por outro lado, a silagem de milho “B” possui 40% de MS. Isso implica que, em 30 kg, apenas 18 kg são água, enquanto 12 kg são nutrientes, dos quais 10% são proteína bruta, totalizando 1.200 g de proteína bruta. Para aplicar esse conceito no planejamento, considere um rebanho com 360 cabeças, sendo 160 vacas adultas, 100 bezerras com menos de um ano de idade e 100 novilhas com idades entre um ano e o momento do parto. Com base nos indicadores do rebanho apresentados na Figura 3, é possível observar a evolução do rebanho na Figura 4.
No exemplo de rebanho, no ano de 2024, a fazenda terá acréscimo de 40 animais a serem alimentados, considerando as mortes e as saídas do rebanho. A composição do rebanho em 2024 será de 210 vacas adultas e 190 animais em fase de recria, sendo 91 bezerras com menos de um ano e 99 novilhas com idades entre um ano e o momento do parto. Levando em conta que os animais adultos têm o peso médio de 650 kg, enquanto as novilhas com menos de um ano pesam, em média, 200 kg, e as bezerras entre um ano e o parto pesam, em média, 400 kg, é possível calcular a exigência de MS de forragem, conforme Figura 5. Multiplicando o peso de cada categoria pelo valor de referência da exigência de forragem (1,8% do peso vivo), obtém-se a necessidade diária de forragem em MS. Multiplicando o consumo diário pelo período de um ano, obtém-se a necessidade anual de cada categoria, e somando esses valores, chega-se à necessidade total de MS de forragem da fazenda que, nesse caso, totaliza 1.280 toneladas. Se na fazenda a silagem de milho é cultivada e as plantas são colhidas no ponto ideal, com 35% de MS, as 1.280 toneladas de MS representam 3.657 toneladas de MN. No entanto, se as plantas de milho são colhidas ainda imaturas, com 29% de MS, as mesmas 1.280 toneladas exigirão 4.414 toneladas de MN. Em termos de área, considerando uma produção de 45 toneladas por hectare (referência amplamente difundida, mas que não elimina a necessidade de conhecer a produtividade de cada parcela da fazenda para o planejamento eficaz), a silagem colhida no ponto ideal exigirá aproximadamente 81,2 hectares, enquanto a silagem colhida imatura necessitará de um pouco mais de 98 hectares.
Caso os gestores da fazenda optem por alimentar os animais (ou algumas categorias) com forragem colhida com teor de MS mais baixo, a necessidade em MN pode ser ainda maior. Assim, se o rebanho do exemplo for alimentado com silagem de capim, que geralmente é colhida com 20% de MS, para atender às 1.280 toneladas de MS, o estoque deverá ser de 6.400 toneladas de MN.
Nesse ponto, fica clara a importância de estudar a exigência de forragens em MS. Dependendo da forrageira e do ponto de colheita, a necessidade de área cultivada e estoque de alimento será maior ou menor. Isso pode levar à impressão de que quanto mais seca for a forragem colhida, melhor, pois conteria mais nutrientes. No entanto, isso não é completamente verdadeiro. Para a maioria das plantas forrageiras, existe o ponto ótimo de colheita. Plantas colhidas prematuramente, antes desse ponto, podem resultar em estoque de alimento deficiente. Por outro lado, plantas colhidas tardiamente, após o ponto ótimo, comprometem a qualidade do alimento e a conservação da forragem. A Figura 6 ilustra o ponto ótimo de colheita das plantas de milho para a silagem.
PARA A MAIORIA DAS PLANTAS FORRAGEIRAS, EXISTE O PONTO ÓTIMO DE COLHEITA. PLANTAS COLHIDAS PREMATURAMENTE, ANTES DESSE PONTO, PODEM RESULTAR EM ESTOQUE DE ALIMENTO DEFICIENTE. POR OUTRO LADO, PLANTAS COLHIDAS TARDIAMENTE, APÓS O PONTO ÓTIMO, COMPROMETEM A QUALIDADE DO ALIMENTO E A CONSERVAÇÃO DA FORRAGEM
A colheita da planta de milho para a produção de silagem deve ser realizada quando o teor de MS estiver entre 32% e 40%. Além de monitorar a umidade da planta, é importante acompanhar o grau de enchimento de amido nos grãos. O ponto ideal é atingido quando aproximadamente 2/3 dos grãos possuem o amido formado, o que corresponde a cerca de 2/3 da linha do leite do grão preenchida. Ao tomar essa decisão, também é essencial considerar o tipo de maquinário que será utilizado na colheita. Máquinas simples, tracionadas por trator, não conseguem processar eficazmente os grãos quando a planta é colhida com mais de 33% de MS e os grãos possuem mais de metade da linha do leite formada (Dias Junior, 2016). Em comparação, máquinas autopropelidas são mais potentes e contam com dispositivos específicos, como o cracker para quebra dos grãos, permitindo boa produção de silagem de milho mesmo com teores de MS próximos a 40% e grãos com 2/3 do amido formado.
SE LIGA: A linha do leite é o ponto de transição entre a parte sólida do grão (amido) e a parte líquida (açúcares), e essa fronteira se desloca da coroa para a base do grão à medida que ele se desenvolve na espiga.
Em resumo
O planejamento da quantidade de forragem necessária para o rebanho é tarefa indispensável, porém desafiadora. Requer disciplina na coleta e organização de informações zootécnicas, a fim de construir a evolução do rebanho. Além disso, demanda conhecimento sobre as forrageiras cultivadas na fazenda e suas expectativas de produção em termos de MS e MN. O planejamento e a gestão das lavouras destinadas à produção de forragem, bem como o entendimento do momento adequado para a colheita, desempenham papel fundamental nesse processo. O planejamento da pecuária leiteira é atividade multidisciplinar que requer a integração do conhecimento zootécnico, agronômico e sobre o uso dos alimentos.
O PLANEJAMENTO DA QUANTIDADE DE FORRAGEM NECESSÁRIA PARA O REBANHO É TAREFA INDISPENSÁVEL, PORÉM DESAFIADORA. REQUER DISCIPLINA NA COLETA E ORGANIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES ZOOTÉCNICAS, A FIM DE CONSTRUIR A EVOLUÇÃO DO REBANHO
JULIA DIAS - Consultora técnica e professora do REHAGRO
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