Deslocamento de abomaso - abordagens modernas
Como reparar a bagunça causada pelo deslocamento de abomaso que desafia a organização anatômica das vacas leiteiras?
O deslocamento de abomaso (DA) afeta, principalmente, vacas leiteiras em pós-parto e é uma enfermidade que acarreta amplos era prejuízos econômicos, uma vez que a maioria dos casos demanda intervenção cirúrgica e os cuidados após a cirurgia (uso de anti-inflamatórios e antibióticos) obrigam o descarte do leite. Por estes motivos, as pesquisas mais recentes sobre o assunto têm dedicado atenção às medidas de prevenção e controle.
O DA é consequência de um processo de atonia ou hipomotilidade do abomaso e pode ocorrer à esquerda ou à direita do animal. O deslocamento de abomaso à esquerda (DAE) corresponde a cerca de 95% dos casos. Nele, o órgão sai da sua posição anatômica original, no assoalho do abdômen, para uma posição entre o rúmen e a parede abdominal esquerda. Já no deslocamento de abomaso à direita (DAD), a víscera pode se deslocar totalmente para o lado direito da cavidade abdominal e, além disso, pode ocorrer torção do órgão, o que torna o quadro grave e com prognóstico ruim – em poucas horas, pode haver o óbito.
Ameaça à ordem
A hipomotilidade do abomaso é o fator base para a ocorrência do deslocamento. A motilidade deficiente resulta no acúmulo de gás e líquido na víscera, os quais favorecem o deslocamento. Segundo estudos, a ocorrência de DAE se concentra nas primeiras seis semanas pós-parto das vacas leiteiras e é mais comum em multíparas.
O período crítico para a ocorrência da doença é o de transição (três semanas que antecedem o parto às três semanas após o parto), no qual a vaca passa de não lactante à lactante e encara a série de adaptações metabólicas que iniciam a produção de leite. Além disso, ocorrem mudanças de manejo e dieta para atender as exigências dos animais nessa fase da lactação.
Visto isso, é possível enumerar fatores de risco para a ocorrência do DAE, que têm como causas as variações metabólicas, fisiológicas, nutricionais e de manejo no período de transição. Por exemplo: 1- Com o aumento da demanda energética e o aumento do fornecimento de concentrado, aumenta-se também a chegada de subprodutos de fermentação rápida, responsáveis por diminuir a motilidade abomasal; 2- A rápida elevação da demanda por cálcio e a consequente hipocalcemia que ocorre em diferentes níveis nesse período também são fortemente associadas à atonia, devido à relação do cálcio com a motilidade dessa víscera; 3- Os problemas metabólicos de cetose e esteatose hepática são correlacionados ao DAE, devido à alta mobilização de gordura no período de transição.
DESLOCAMENTO DE ABOMASO À ESQUERDA CORRESPONDE A CERCA DE 95% DOS CASOS
RAÇAS
As raças com aptidão leiteira são mais suscetíveis ao DA, o que é diretamente relacionado ao maior grau de desafio metabólico imposto pela alta produção leiteira e à possível seleção genética que ocorreu ao longo dos anos.
DOENÇAS
Doenças de ocorrência comum no período de transição são frequentemente relacionadas ao DA, já que são condições que levam aos quadros de inapetência, diminuição da ingestão de matéria seca, distúrbios metabólicos e inflamações, os quais favorecem a atonia do abomaso. À exemplo, é possível citar retenção de placenta, cetose, metrite, mastite clínica, úlcera abomasal, esteatose hepática, hipocalcemia e indigestão.
Bagunça detectada
No exame clínico do animal com DA, o achado mais característico é o chamado “ping metálico”, o qual é auscultado durante a percussão com auscultação do abdômen. O som se deve ao barulho do líquido em contato com o gás presente em excesso no abomaso, sendo que sua amplitude varia de acordo com o volume de gás acumulado no órgão. É importante destacar que esse não é um sinal definitivo, pois o rúmen de um bovino que passa por privação alimentar pode apresentar o mesmo som. Por isso, é importante a avaliação clínica completa do animal, associando-a ao histórico dos sintomas. Exames complementares (como a análise dos líquidos ruminal e abomasal e a ultrassonografia) podem facilitar a confirmação do diagnóstico.
O “PING METÁLICO”, AUSCULTADO DURANTE A PERCUSSÃO COM AUSCULTAÇÃO DO ABDÔMEN DO ANIMAL, É O ACHADO CLÍNICO MAIS SUGESTIVO DE DESLOCAMENTO DE ABOMASO
Foto 1. Deslocamento de abomaso à direita.
Fonte: Cleber Souza de Oliveira
É possível arrumar?
O DAE é representado por casos leves e com prognóstico favorável. Ao se deslocar para a esquerda, o abomaso costuma ter a passagem da ingesta parcialmente bloqueada, o que causa poucos danos e é de fácil reversão. Entretanto, o quadro pode evoluir para dilatação abomasal, com aumento da permeabilidade da parede do órgão, possibilidade de translocação bacteriana e, por fim, peritonite. Em alguns casos, é possível ter, até mesmo, ruptura do abomaso.
Nos casos de DAD, o abomaso pode apresentar torção, com bloqueio total da saída da ingesta e, ainda, isquemia tecidual por obstrução dos vasos sanguíneos locais e aumento progressivo do órgão. Devido à possibilidade de torção, o deslocamento à direita costuma ser mais grave, com prognóstico muito ruim, ou seja, grande risco de culminar na morte do animal em poucas horas. Em ambos os casos, o conteúdo abomasal permanece mais tempo no órgão, aumentando a osmolaridade e deslocando água do plasma sanguíneo para o lúmen. Esse quadro pode acarretar diarreia, desidratação e mudanças na postura, como a cifose, em decorrência à dor.
Foto 2. Necropsia de vaca com deslocamento e torção do abomaso à direita; mucosa congesta e presença de edema nas camadas submucosa e serosa.
Fonte: Cleber Souza de Oliveira
Retorno da ordem
Uma vez que o DA está, em boa parte das situações, associado a outras patologias primárias/concomitantes, o tratamento deve contemplar, também, a retirada da causa base. A abordagem para tratar o animal com DA é curativa, por meio de cirurgia e medidas paliativas para reverter as desordens fisiológicas: associa-se hidratação intravenosa e hidratação oral, além de outros tratamentos pós-operatórios recomendados pelo Médico Veterinário.
O DA acarreta perdas econômicas ao produtor, pois, além da diminuição do consumo de matéria seca e da produção de leite, há o alto custo com o tratamento. A correção do DA requer, na maioria dos casos, intervenção cirúrgica, o que demanda assistência veterinária especializada. Ademais, após a cirurgia, o animal receberá antibióticos que implicarão em descarte do leite. Por tudo isso, para a redução dos impactos inerentes ao DA, os manejos preventivos e de monitoramento são a melhor estratégia.
Visto que grande parte dos fatores de risco estão associados ao período de transição das vacas leiteiras, os manejos pré e pós-parto devem ser especialmente bem elaborados. O período pré-parto é crítico, sob os aspectos nutricional e fisiológico. Após a secagem, é comum a vaca receber dieta rica em forragem, porém o concentrado não deve ser excluído, já que ela precisa se adaptar ao grande aporte de energia que receberá após o parto. A adaptação gradual evita as indigestões que podem representar a causa primária ao DA.
VISTO QUE GRANDE PARTE DOS FATORES DE RISCO ESTÃO ASSOCIADOS AO PERÍODO DE TRANSIÇÃO DAS VACAS LEITEIRAS, OS MANEJOS PRÉ E PÓS-PARTO DEVEM SER ESPECIALMENTE BEM ELABORADOS
Além disso, invariavelmente, o animal apresentará queda no consumo voluntário, devido à fisiologia do terço final da gestação, que favorece a ocorrência de doenças metabólicas que também podem desencadear o DA – além de outras consequências.
Pode ser necessário “acidificar” com sais aniônicos a dieta dos animais em pré-parto. A hipocalcemia periparto predispõe o DA, portanto é importante incluir quantidades de minerais correspondentes aos requerimentos da categoria. Além disso, vale considerar a adoção da dieta aniônica – e seu posterior monitoramento por meio do pH da urina, que deve revelar ligeira queda, em função da leve acidificação no sangue. Essa acidemia suave sensibiliza o paratormônio, responsável por disponibilizar o cálcio “estocado” para a circulação sistêmica e uso do organismo.
Além dos manejos de prevenção, identificar o quadro e intervir o mais rápido possível é fundamental. A maior ocorrência do DA é concentrada nas três semanas pósparto, portanto, a rotina de avaliação visual e física dos animais recém-paridos deve ser mantida, o que inclui o monitoramento do comportamento, da produção e do consumo voluntário. Por fim, a determinação das concentrações de betahidroxibutirato no pós-parto pode auxiliar na detecção das vacas com cetose clínica e subclínica, as quais podem manifestar o DA secundariamente.
RAYSSA REIS - Graduanda em Medicina Veterinária (EV-UFMG)
GABRIEL VIEIRA SOARES - Graduando em Medicina Veterinária (EV-UFMG)
GABRIELA ANTEVELI - Mestranda em Ciência Animal (EV-UFMG)
RODRIGO MELO MENESES - Professor de Clínica de Ruminantes (EV-UFMG)
Enviar comentário