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Manejo, Reprodução, Sanidade

Diarreia Viral Bovina (BVD)

O vírus da diarreia viral bovina (BVD), do gênero Pestivirus, invade as vias oral e nasal, desafia a saúde dos rebanhos e dissemina prejuízos produtivos e reprodutivos nos sistemas de produção de leite.

Diarreia Viral Bovina (BVD)

O vírus da diarreia viral bovina, ou BVD, pode confundir muita gente. A forma como é chamado nos leva a imaginar que os problemas causados pelo BVD são relacionados, principalmente, ao trato gastrointestinal, porém, os principais quadros clínicos associados à doença são respiratórios e reprodutivos. Ter esse conhecimento é essencial para incluirmos a doença como um dos principais diagnósticos diferenciais em situações de surtos de problemas respiratórios e reprodutivos. 

O BVD é do gênero Pestivirus e pode ser classificado em duas espécies, Pestivirus A e Pestivirus B. Nas duas espécies existem cepas chamadas citopáticas e não-citopáticas, sendo a primeira a mais grave, associada à “doença das mucosas” que afeta o trato gastrointestinal, e a segunda a relacionada aos sinais clínicos clássicos de BVD, como aborto, repetição de cio e nascimento de bezerros persistentemente infectados (PI). A divisão ocorre pela diferença entre os efeitos provocados pelas cepas virais aos tipos celulares, sendo mais ou menos invasivas e patogênicas, de modo que as citopáticas causam danos à estrutura celular. 

O BVD está presente e causa muitos prejuízos no mundo todo. No Brasil, possui alta prevalência, que pode variar de 24 a 90% de rebanhos com animais soropositivos. A doença afeta tanto animais jovens quanto adultos e é muito conhecida pela via de infecção transplacentária, pela qual os bezerros são infectados ainda no útero. Infelizmente, a doença ainda é alvo de negligência e falta de conhecimento e muitas propriedades acabam por não ter acesso ao diagnóstico, deixando escapar a oportunidade de controlá-la. Por isso, a seguir, apresentaremos pontos importantes para que você possa estar atento à ocorrência da BVD.


COMO É TRANSMITIDA? 

A infecção ocorre pelas vias oral ou nasal, por meio do contato com fezes, urina e secreções contaminadas. A multiplicação viral inicia-se nos tecidos linfoides próximos ao local de invasão, geralmente, no trato respiratório superior. O período de multiplicação do vírus no sangue, ou viremia, pode variar de 2 a 15 dias, quando o animal infectado pode manifestar sinais clínicos ou permanecer completamente assintomático, como ocorre na maioria dos casos de infecções por amostras não-citopáticas. A diferença de apresentação está relacionada ao status imunológico, idade, condições de conforto, nutrição, higiene... Enfim, fatores comuns que podem ser associados a diversas enfermidades. O fato de não haver como prever o curso da doença deve servir de grande alerta aos produtores, dada sua distribuição no Brasil e a alta frequência de casos assintomáticos. 

Uma via de infecção muito importante para o BVD é a transplacentária, pela qual fetos ou bezerros, dependendo da idade gestacional, são infectados na vida intrauterina. Essa via pode levar ao nascimento dos já citados animais PI, sigla muito usada quando falamos desse assunto.  


COMO PODE EVOLUIR? 

As vacas infectadas pelo BVD podem ter adquirido o vírus antes ou durante a gestação, de modo que o período em que a infecção ocorreu é determinante para os possíveis destinos de sua cria. Para entendermos o porquê, precisamos entrar um pouco no estudo do desenvolvimento do sistema imune no feto bovino, iniciado na vida fetal, apenas 45 dias após a concepção: o desenvolvimento inicia-se com a formação do timo e é seguido por diversas etapas, em que são formados outros órgãos linfoides, como baço e medula óssea, além dos tipos celulares, encerrando-se por volta dos 175 dias de gestação. Durante o processo de formação, o sistema imune aprende, aos poucos, a lidar com o restante do corpo. Próximo aos 125 – 150 dias de gestação, quando está passando por fase de programação, ocorre um “treinamento”, no qual as células de defesa são orientadas a reconhecer e diferenciar os elementos próprios dos não próprios - como os microrganismos patogênicos - do organismo.

Em decorrência dessa sequência de eventos e dependendo da cepa viral, o que acontece é que, se a infecção da mãe ocorrer antes do feto passar pela “fase de treinamento”, ou seja, até o fim do primeiro terço de gestação, o sistema imune do feto não será capaz de reconhecer o BVD como não próprio. Dessa forma, as células imunes não estabelecerão defesas e permitirão que o vírus permaneça como parte do feto. Quando a infecção é por cepas citopáticas, geralmente há aborto ou defeitos teratogênicos, enquanto que quando é por cepa não-citopática, o resultado é a formação do PI. Em geral, os animais PI têm dificuldades de desenvolvimento e vivem menos, mas, enquanto estão na propriedade, funcionam como fonte de infecção para os sadios, pois o vírus que circula em seu organismo é livremente eliminado no ambiente. Vale sempre destacar que o bezerro PI pode nascer com peso inferior ao normal e apresentar retardo no crescimento, ainda que não apresente alterações clínicas. 

O vírus de amostra não-citopática pode, após o nascimento do bezerro PI, sofrer mutação e se tornar citopático, levando à doença das mucosas. Por não estabelecerem resposta imune contra o vírus, esses animais são soronegativos, ou seja, não respondem com produção de anticorpos, o que dificulta sua identificação. Estudo recentemente publicado encontrou prevalência de animais PI em 37,5% dos rebanhos analisados na região do Paraná, importante bacia leiteira do nosso país. 

Em outro cenário, na infecção tardia, após o terço inicial de gestação, o BVD encontra o feto com sistema o imune já capacitado para reconhecimento, logo, é visto como agente estranho. Nesse momento, o feto já é capaz de montar a própria resposta imune, entretanto, sua maturidade imunológica só se completará próximo à puberdade, de forma que a resposta à infecção precoce pode ser insuficiente para a sua defesa. Nesses casos, alguns desfechos são possíveis frente à infecção: morte fetal, malformação, nascimento de bezerro normal soropositivo ou nascimento de bezerro fraco soropositivo. Já nas infecções por cepas citopáticas que ocorrem após o “período de treinamento do sistema imune”, pode haver nascimento de bezerro soropositivo, clinicamente normal ou fraco.  

Imagem 1. Infecções por cepas não-citopáticas, que ocorreram até o fim do primeiro terço de gestação, resultam no nascimento de bezerro PI, que pode nascer com peso inferior ao normal e apresentar retardo no desenvolvimento.

COMO DIAGNOSTICAR? 

O diagnóstico de BVD pode ser dado por exames complementares de amostras de restos placentários e feto abortado, necropsia, bem como análises em sangue, leite e fezes. Com relação às lesões macroscópicas, na infecção transplacentária, a cria pode apresentar hiperplasia cerebelar; catarata; degeneração e hipoplasia da retina e glomerulonefrites imunomediadas decorrentes da deposição de imunocomplexos. A replicação do vírus em diferentes tecidos causa diversos problemas: no trato gastrointestinal, são comuns úlceras esofágicas, ruminais, omasais e abomasais, acompanhadas de edema e inflamação, enquanto nos intestinos pode ser observada necrose (morte tecidual) nas placas de Peyer - importante componente do tecido linfoide nesses locais. 

Já o quadro da doença das mucosas é extremamente grave e pode levar o animal à morte rapidamente, quando se dá na forma aguda. As lesões ocorrem no trato gastrointestinal e trato respiratório superior, principalmente, e observa-se febre, depressão, anorexia, diminuição nas frequências cardíaca e respiratória e desidratação. As lesões gastrointestinais são em formas de úlceras erosivas e hemorrágicas, de formato circular, oval ou irregular, nas mucosas de todo o trato, incluindo as do focinho, da boca, dos lábios, das gengivas, da língua e do esôfago, podendo, ainda, haver áreas de necrose. Outros locais podem ser acometidos, como a vulva, os tetos e a pele entre os cascos. Devido à gravidade das lesões, os animais podem ter diarreia, com ou sem sangue, dificuldade respiratória e imunossupressão, ficando mais susceptíveis às infecções secundárias. 

A forma crônica da doença das mucosas envolve descarga nasal e ocular persistente, falta de apetite, perda de peso, diarreia contínua, laminite, falhas no pelo e úlceras, principalmente nas regiões da boca, perianal e vulvar. Como os animais podem chegar à idade adulta, também poderão ser observadas: infertilidade; malformações fetais, como microcefalia, hipoplasia ou aplasia cerebelar; incoordenação motora; falha nos pelos; catarata; atrofia de retina; cegueira; prejuízo do desenvolvimento muscular e mortalidade fetal, por aborto e mumificação.

O diagnóstico deve ser feito com base nos sinais clínicos, achados de necropsia e exames complementares. Vale ressaltar a importância de observar o rebanho como um todo, para identificação de outros sinais da presença do vírus, como o desempenho produtivo (leite e ganho de peso) e a situação reprodutiva das vacas, incluindo a frequência de abortos, repetição de cio e nascimento de bezerros malformados ou fracos. 

A confirmação da doença pode ser realizada por testes sorológicos para detecção de anticorpos no soro ou plasma sanguíneo, como o ELISA, ou técnicas moleculares de identificação direta, como o PCR de amostras de secreções nasal e oral, fezes, sangue, leite e/ou fragmentos de tecidos do trato gastrointestinal.  


O QUE FAZER, ENTÃO? 

A diarreia viral bovina não tem tratamento. O diagnóstico de situação, quando se suspeita de BVD no rebanho, é de fundamental importância, uma vez que existem estratégias de controle eficazes, como a vacinação e o descarte dos PI, além de ajustes necessários no manejo, com o objetivo de manter o status imunológico adequado. Um dos benefícios da vacinação, além da proteção da própria vaca, é a proteção do feto. Quando vacas vacinadas contraem o vírus, o título de anticorpos na circulação materna dificulta a passagem do vírus pela placenta, o que torna a infecção do feto pouco provável, enquanto que em fêmeas não vacinadas, o vírus ultrapassa a barreira placentária com maior facilidade. 

Diferentes vacinas comerciais estão disponíveis contra a BVD, geralmente associadas aos antígenos contra outros agentes, como IBR, vírus respiratório sincicial bovino e vírus da Parainfluenza-3. É importante que o Médico Veterinário, ciente da situação do rebanho, recomende a vacina pensando na resposta imunológica desejada e na relação benefício/custo mais favorável. Como as formulações são diferentes, a escolha deve levar em consideração o tipo de vacina (viva ou inativada), a associação para proteção contra outras enfermidades, o preço, o protocolo de aplicação, a gravidade do surto ou dos casos e os demais aspectos operacionais do sistema.

Figura 2. Esquema vacinal contra a BVD.

Ainda assim, sabe-se que há variação individual de resposta, por isso, a vacinação nunca deve ser usada como medida única para controle de qualquer doença. É extremamente necessário que sejam identificados os pontos críticos para correção dos fatores de risco, que, quase sempre, são associados aos manejos de rotina. Em geral, recomenda-se a vacinação de animais a partir dos 3 meses, com revacinação no período reprodutivo, 30 dias antes da monta ou inseminação, e reforço anual ou semestral, dependendo do desafio na propriedade. 

No entanto, o controle pode ser feito com ou sem vacinação, a depender das características do rebanho e da epidemiologia da doença, que devem ser avaliadas pelo Médico Veterinário sanitarista. Rebanhos abertos, com alta rotatividade de animais ou que já tiveram animais com diagnóstico positivo de BVD e rebanhos em que já houve animais com quadro clínico compatível com a doença são considerados de alto risco, por isso, é recomendada a vacinação. 

O controle sem vacinação é possível em rebanhos fechados, nos quais a entrada de animais não é frequente, mas, quando acontece, é realizada de acordo com criteriosa escolha da propriedade (livre ou controlada) de origem e os devidos cuidados de quarentena e testagem antes da incorporação ao rebanho. É possível realizar o controle sem vacinação também em rebanhos monitorados que nunca receberam diagnóstico da doença ou apresentaram animais com quadro clínico compatível com BVD . 

Com o trânsito e aumento da densidade dos animais, somados à intensificação dos sistemas, é cada vez mais difícil encontrar propriedades que desfrutem dessa situação. Nesses rebanhos privilegiados, o objetivo do controle é evitar que haja a entrada do vírus, portanto, é imperativo testar para BVD todo e qualquer animal previamente ao ingresso na propriedade. Além disso, é recomendada a testagem esporádica do rebanho, para reiterar o status negativo da presença da doença. As categorias vacas prenhes e bezerros são as mais indicadas para o teste, por serem as protagonistas no processo de disseminação da doença. 

Apesar desse Pestivirus (ou vírus da peste!) estar a solta em todos os cantos, não há previsão para a criação de um Plano Nacional de Controle e Erradicação da BVD, como existe contra brucelose, tuberculose e febre aftosa. O fato, mais uma vez constatado, é que o principal responsável pela saúde - ou a falta dela - é o manejo. Precisamos entender que os desafios sanitários estão por toda parte, portanto, nosso papel é impedir que o equilíbrio entre animal, ambiente e manejo se desloque do eixo da saúde para o eixo da doença. Para isso, devemos voltar nossa atenção a todos os fatores que podemos controlar na rotina, da nutrição de qualidade ao correto dimensionamento das instalações; da escolha dos profissionais envolvidos ao monitoramento rígido do rebanho; do manejo mais básico ao procedimento mais sofisticado: no fim das contas, perdem os patógenos e ganham os animais, em bem-estar, e o produtor, em sucesso na atividade.


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