Diarréias em bezerras: Causas e consequências
Texto: Elias Jorge Facury Filho, Antônio Ultimo de Carvalho, Gustavo H. Ferreira Abreu Moreira, Moises Dias Freitas
As diarreias dos bezerras recém-nascidos são enfermidades frequentes, tanto nas explorações para produção de leite, quanto de corte. Sua incidência é alta, chegando a atingir, em alguns casos, 100% dos animais até as três primeiras semanas de vida. Nesta categoria, a frequência diária de bezerras com diarreia varia de 6 a 12%. A diarreia, independente do agente etiológico envolvido, ocasiona vários distúrbios na saúde do bezerro que podem determinar altas taxas de mortalidade. Estas taxas são muito variáveis entre propriedades e estão diretamente relacionadas com o tipo de intervenção terapêutica empregada e com a precocidade desta intervenção.
1- Introdução
A criação de bezerras representa uma etapa de altos custos na criação de bovinos, e é onde se concentram os melhores animais da propriedade quando se realiza um programa de melhoramento genético. Por outro lado, esta categoria enfrenta desafios sanitários constantes que determinam alta frequência de enfermidades infecciosas e as maiores taxas de mortalidade dentro do plantel. Dentre os desafios enfrentados nesta fase, podemos destacar a garantia de uma boa transmissão de imunidade passiva via colostragem, a involução adequada do cordão umbilical, a nutrição adequada e a manutenção do animal em local confortável e com boa higiene.
Dentre as enfermidades que acometem bezerras neonatos destacam-se: infecções umbilicais e suas consequências, septicemia, diarreias, estomatites e pneumonias.
Este artigo procura explicar as principais causas de diarreia em bezerras neonatos e os distúrbios orgânicos ocasionados por esta enfermidade.
2- Etiologia e mecanismos das diarreias em bezerras
A diarreia é definida como o aumento na frequência de defecação ou no volume das fezes. Frequente nos bovinos leiteiros, é uma enfermidade de caráter multifatorial, ocorrendo principalmente nas quatro primeiras semanas de vida. Está associada a diversos fatores ambientais, às práticas de manejo, à nutrição, além de uma ampla variedade e associação de patógenos, sendo, portanto, um produto destas interações.
Os enteropatógenos (patógenos intestinais) comumente associados à ocorrência das diarreias neonatais em bezerras são as bactérias (Salmonella spp e patotipos de Escherichia coli), os protozoários (Cryptostoridium spp, Eimeria spp e Giardia sp) e os vírus (Rotavirus e Coronavirus), como pode ser observado na Figura 1. As helmintoses (verminoses) gastrointestinais provocam diarreia em bezerras mais velhos, a partir de 2-3 meses de idade, exceto naqueles mantidos em situação de higiene muito precária, onde o alguns tipos de vermes podem assumir importante papel na diarreia em bezerras novos.
As enteropatias (doenças intestinais) são resultantes de um complexo patofisiológico mediado por toxinas bacterianas, inflamações induzidas por parasitas e bactérias ou por atrofia de vilosidades intestinais ocasionadas pela ação viral ou de protozoários (Figura 1). Estas condições resultam, clinicamente, em episódios de diarreia que têm por origem uma hipersecreção (excesso de secreção de líquidos) intestinal, má absorção e digestão, ou a combinação destes mecanismos (Figura 1).
3 – Alterações da homeostase (equilíbrio) corporal causadas pela diarreia
Independentemente dos agentes ou dos mecanismo de ação envolvidos, é importante lembrarmos que há uma grande perda de água e eletrólitos, principalmente Na+, Cl-, K+ e HCO3- , nas fezes, durante a diarreia. Quando comparamos fezes de bezerras normais e com diarreia, observamos que há um significativo aumento na excreção de vários elementos (Tabela 1). Assim, além das perdas de água e eletrólitos, também se observa a perda de nutrientes (gordura, proteína, ácidos graxos livres), que leva o animal a um quadro de balanço energético negativo e hipoglicemia.
Outra observação importante na Tabela 1, é o aumento expressivo da excreção de bactérias (coliformes). Sabe-se que, nos animais com diarreia, independente do agente etiológico, há um aumento da colonização do intestino por Escherichia coli. Assim, o mecanismo de diarreia, aumentando o fluxo de conteúdo intestinal e sua eliminação para o meio externo, contribui para o controle da população microbiana intestinal, excreção de toxinas bacterianas e de restos celulares. Se analisarmos por este lado, podemos concluir que a diarreia é um processo de defesa do organismo, e que seu lado patológico é a perda excessiva de água, eletrólitos e nutrientes, que causam importantes distúrbios na homeostase corporal.
Os animais com diarreia apresentam distúrbios que, dependendo da intensidade, podem ocasionar até sua morte. Dentre estes distúrbios, podemos destacar a desidratação, baixas concentrações sanguíneas de sódio e íon carbonato, hiperpotassemia (excesso de potássio) relativa, hipoglicemia e acidose metabólica. A Tabela 2 apresenta dados de um experimento realizado em uma fazenda leiteira de Minas Gerais e ilustra as diferenças entre estes parâmetros sanguíneos em bezerras sadios e com diarreia.
3.1- Desidratação
O bezerro com diarreia apresenta uma perda de água nas fezes cerca de 18 vezes maior que o normal. Este volume é oriundo da hipersecreção intestinal, motivada por enterotoxinas ou inflamação das células intestinais, e também pela menor absorção, observada nos casos de atrofia de vilosidades. Além disso, ocorre também diminuição do consumo voluntário de água e de leite pelo bezerro. Aliás, outro fator que contribui com a desidratação é a cultura de não fornecer leite aos bezerras com diarreia, restringindo ainda mais seu consumo de água e nutrientes. A água representa de 60 a 80% da composição corpórea dos animais jovens, sendo portanto de grande gravidade as doenças que levam à perda de água do organismo, resultando em quadros de desidratação.
Os animais desidratados apresentam sinais clínicos que variam de acordo com a intensidade desta alteração. Na desidratação leve (6%), observa-se diminuição da elasticidade da pele, mucosas secas e saliva pegajosa, porém o animal ainda apresenta comportamento normal. A partir de 8% de desidratação, que é considerada moderada, o animal apresenta diminuição acentuada da elasticidade da pele, mucosas ressecadas e afundamento do globo ocular (endoftalmia). Nesta situação, já observam-se mudanças de comportamento, com depressão e diminuição do consumo de alimentos. Neste grau de desidratação, os transtornos são mais evidentes e podemos observar extremidades mais frias, mucosas congestas e tempo de perfusão capilar aumentado, retratando uma hemoconcentração (sangue mais concentrado) e hipovolemia (baixo volume sanguineo). A partir de 10% de desidratação, que caracteriza um quadro grave, todos os sinais descritos acima ficam mais intensos, a apatia aumenta e o animal permanece mais tempo deitado. Em torno de 12% de desidratação, o animal pode vir a óbito devido, dentre outras causas, à hipovolemia, levando à falência dos órgãos em função do baixo suprimento de oxigênio nos tecidos (Tabela 3).
Vale a pena destacar que os sintomas iniciais de desidratação somente são observados quando o animal já perdeu líquidos corporais na proporção de 6% do peso vivo. Até este momento, o bezerro com diarreia já estava desidratado e não apresentava nenhum sintoma. Assim, é necessário enfatizar a importância de iniciar precocemente a hidratação do animal com diarreia, mesmo antes do aparecimento dos sinais iniciais de desidratação.
3.2- Hipocloremia (baixa de cloro), hiponatremia (baixa de sódio) e hiperpotassemia (excesso de potássio) relativa
Acompanhando a maior perda de água nas fezes, ocorre também a perda de eletrólitos, principalmente do sódio, potássio e do bicarbonato, que colaboram, juntamente com a diminuição da ingestão de alimentos, para os quadros de diminuição das concentrações sanguíneas de sódio e do íon carbonato, com a evolução da diarreia. No início da diarreia, não há uma queda imediata na concentração plasmática, visando manter o equilíbrio eletrolítico. Com a evolução do quadro, os mecanismos de controle do volume circulatório tornam-se mais importantes que os controles das concentrações de eletrólitos do fluido extracelular. Em resposta às excessivas perdas de íons e água, ocorre a liberação do hormônio antidiurético e aumento da sede, que promovem retenção de água e diminuição das concentrações dos eletrólitos.
Não existem sintomas específicos que caracterizam a baixa concentração sanguínea de sódio (hiponatremia). Normalmente, estão associados à desidratação, fraqueza muscular e depressão, que ocorrem quando há distúrbios eletrolíticos e do balanço ácido-base. Valores de sódio inferiores a 115 mmol/L na concentração sérica são considerados hiponatremia grave e podem ocasionar um quadro de edema (inchaço) e/ou hemorragias cerebrais com sintomatologia nervosa, podendo levar o animal à morte súbita.
Durante os episódios de diarreia, há distúrbios no equilíbrio intra e extracelular do potássio, podendo resultar em hiperpotassemia, mesmo que as concentrações totais corporais deste íon estejam normais ou até baixas em consequência das excessivas perdas nos fluidos fecais.
O equilíbrio do potássio (intra ou extracelular) é diretamente influenciado pelo equilíbrio ácido-base. A acidose metabólica, causada pela diarreia, acarreta elevação das concentrações de íons hidrogênio (H+) no meio intracelular. Uma das formas de compensação da acidose metabólica é a entrada dos íons hidrogênio para o espaço intracelular. Dessa forma, para manter a eletroneutralidade do meio intracelular, os íons potássio (K+) migram para o meio extracelular, resultando no aumento das concentrações plasmáticas deste cátion. A intensidade da hiperpotassemia nos animais enfermos é diretamente dependente da gravidade da afecção e de seus achados clínicos, principalmente do grau de desidratação (Tabela 2) e da acidose metabólica, e será mais intensa quando ocorrerem grandes perdas de bicarbonato.
O aumento das concentrações sanguíneas de potássio podem ocasionar graves alterações cardíacas, principalmente taquicardia e arritmia, e podem complicar bastante o quadro clínico do animal.
3.3- Acidose metabólica
A principal consequência da diarreia é a acidose metabólica, ocorrendo de forma compensada em, praticamente, 100% dos bezerras. Esse distúrbio é causado pelas perdas excessivas de bicarbonato (HCO-3), que ocorrem pelas fezes, assim como pelo acúmulo de ácidos orgânicos, especialmente o lactato, e ainda pela redução na eliminação destes ácidos pelos rins em decorrência da desidratação.
A acidose metabólica é a principal causa da morte dos bezerras com diarreia. A eficácia do organismo em compensar a acidose instalada é que determinará a vida ou morte dos animais com diarreia. Na tentativa de compensar a acidose metabólica, o organismo lança mão, principalmente, dos mecanismos fisiológicos. Há o aumento da frequência ou amplitude respiratória, aumentando a eliminação de CO2, a troca dos íons K+ do meio intracelular para o meio extracelular por íons H+, elevando a potassemia dos enfermos, mesmo que o potássio corporal total esteja reduzido; e ainda a retenção de água e eliminação dos íons H+ na urina, levando a uma redução do pH urinário (acidúria). Quando estes mecanismos de compensação estão funcionando adequadamente o animal consegue sobreviver, porém, quando há falhas, ocorre queda do pH sanguíneo levando a uma acidose metabólica descompensada, que determina a falência dos processos enzimáticos e hormonais do organismo, determinando o agravamento do quadro clínico e morte do animal.
É importante destacar que todos os mecanismos de compensação da acidose metabólica são dependentes da hidratação do animal, garantindo uma boa perfusão renal e, consequentemente, eliminação de íons hidrogênio e de lactato na urina. Além disso, animais desidratados apresentam depressão do centro respiratório e podem falhar na capacidade de aumentar a frequência respiratória para eliminação de CO2.
Assim, bezerras com diarreia e com acidose metabólica, apresentam aumento da frequência respiratória, restrição de movimentos e depressão. A depressão, nestes casos, se deve a uma soma de fatores: desidratação, hiponatremia, hipoglicemia e, principalmente, ao acúmulo de ácido lático sanguíneo.
3.4- Hipoglicemia
Durante a fase inicial da diarreia há uma normoglicemia (valores normais de glicose no sangue), entretanto, com a evolução da enfermidade ocorre hipoglicemia. A hipoglicemia é resultado da redução do consumo, associado à diminuição da digestão dos carboidratos e da absorção intestinal da glicose. Além disso, os bezerras apresentam pequenas reservas de energia corporais, em função da idade, além de alterações no metabolismo celular em consequência da hipovolemia, hipóxia (baixa de oxigênio) e acidose pelo acúmulo de ácido lático. Os sintomas da hipoglicemia são inespecíficos, como fraqueza, hipotermia, decúbito e coma.
4- Evolução dos quadros de diarreia
Os trabalhos realizados na Escola de veterinária da UFMG demonstraram que, com a evolução dos dias em diarreia, os parâmetros clínicos e as alterações orgânicas dos bezerras doentes apresentam aumento da intensidade, e os quadros de desidratação, acidose metabólica, hiperpotassemia e hipoglicemia também ficam mais intensos, aumentando o risco de morte, caso os animais não sejam submetidos à hidratação (Figuras 2 e 3).
Para garantir uma intervenção terapêutica adequada, faz-se necessário um monitoramento diário dos bezerras para realização de diagnóstico precoce da enfermidade. Na grande maioria dos casos, a intervenção terapêutica indicada nos casos de diarreia, independente do agente causador, é a hidratação do animal. Quando esta é implementada no início da enfermidade, pode ser realizada pela via oral com muita eficiência. Porém, se a desidratação já for moderada ou grave, é importante a reidratação pela via endovenosa e com formulações mais complexas. Então, para evitar estes transtornos e garantir a sobrevivência de bezerras com diarreia, faz-se necessário o diagnóstico precoce da doença e a adoção imediata de hidratação oral, não esperando os sinais clínicos de desidratação aparecerem. Assim, costumamos dizer que nosso objetivo é trabalhar com a prevenção da desidratação, e não com reidratação.
5- Considerações finais
• A diarreia é uma enfermidade muito frequente em bezerras neonatos e pode, dependendo da estratégia terapêutica utilizada, ser responsável por altos índices de mortalidade;
• Bezerras com diarreia apresentam desidratação, acidose metabólica, hipoglicemia e alterações eletrolíticas, que se acentuam com a evolução do quadro e podem levar o animal à morte;
• O diagnóstico precoce e a implementação de hidratação oral são importantes medidas para diminuir o impacto das diarreias na saúde dos bezerras.
• É necessário conhecer os fatores de risco envolvidos em cada propriedade em relação à saúde dos bezerras para a adoção de medidas de controle da diarreia.
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