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Sanidade

Entenda tudo sobre a síndrome abomasal em bezerras

A crescente incidência de síndromes abomasais em bezerras, tais como úlceras, timpanismo, abomasite e deslocamento do abomaso, está diretamente ligada à taxa de esvaziamento do órgão e evidencia a complexidade multifatorial dessas condições.

Entenda tudo sobre a síndrome abomasal em bezerras

Diversos estudos apontam que o aumento no ganho de peso nas primeiras semanas de vida das bezerras promove saúde, reduz mortalidade pré-desaleitamento, diminui a idade ao primeiro parto e eleva a produtividade na primeira lactação. Uma forma de atingir esse ganho têm sido por meio do fornecimento de maiores volumes de leite ou sucedâneos, ou ainda, o adensamento da dieta líquida.

Contudo, é fundamental considerar a fisiologia das bezerras, especialmente a velocidade de esvaziamento do abomaso, fator crítico que influencia tanto a nutrição quanto o risco de doenças. O volume por mamada de leite, pH e frequência de ingestão são fatores que interferem diretamente no esvaziamento do abomaso, pois quanto maior o volume da dieta líquida, maior o tempo gasto para esse esvaziamento.

Mecanismo do esvaziamento abomasal

O esvaziamento do abomaso em bezerras é regido por complexos mecanismos de controle neural, tanto intrínsecos, presentes no sistema nervoso intramural do próprio abomaso, quanto extrínsecos, oriundos de nervos externos ao trato gastrointestinal como o nervo vago. Esses sistemas de controle são fundamentais para regular a motilidade e a secreção de substâncias que promovem contrações coordenadas, essenciais para o esvaziamento eficaz do abomaso. Distúrbios nesses controles podem afetar diretamente a velocidade de esvaziamento, resultando em condições adversas como timpanismo abomasal (Figura 1), abomasite, úlceras e deslocamento do abomaso (Figura 2).



O ESVAZIAMENTO DO ABOMASO EM BEZERRAS É REGIDO POR COMPLEXOS MECANISMOS DE CONTROLE NEURAL, TANTO INTRÍNSECOS, PRESENTES NO SISTEMA NERVOSO INTRAMURAL DO PRÓPRIO ABOMASO, QUANTO EXTRÍNSECOS, ORIUNDOS DE NERVOS EXTERNOS AO TRATO GASTROINTESTINAL COMO O NERVO VAGO 

A taxa de esvaziamento abomasal é afetada por uma diversidade de fatores, incluindo o volume e a osmolaridade da refeição, a motilidade, a pressão luminal, as contrações da parede abomasal, a viscosidade da ingesta, a coordenação antroduodenal, e a resistência do piloro, conforme detalhado na Tabela 1.




Fatores de risco para a síndrome abomasal

Os fatores de risco para doenças abomasais estão fortemente ligados à redução da motilidade do abomaso. Qualquer elemento que possa diminuir ou alterar essa motilidade pode estar associado ao surgimento dessas enfermidades. O uso de sucedâneos de leite pode contribuir para o problema em duas situações específicas: uma envolvendo sucedâneos de baixa qualidade com alto teor de fibra vegetal e outra relacionada a técnicas de adensamento realizadas de forma inadequada.

Diarreia, pneumonia e tristeza parasitária também podem atuar como fatores de risco. A inflamação desencadeada por essas doenças reduz a taxa de passagem de leite no abomaso, resultando em sintomas clínicos associados a distúrbios abomasais. O tratamento inadequado, incluindo o uso excessivo de anti-inflamatórios e a administração de antibióticos junto a agentes que reduzem a motilidade intestinal para controlar diarreias, pode igualmente predispor ao aparecimento de complicações abomasais. Relatos também indicam que soluções de hidratação altamente concentradas podem comprometer o esvaziamento abomasal (Figura 3).



Casos clínicos 

1. Timpanismo abomasal

 Em um experimento realizado na Escola de Veterinária da UFMG focado em enteropatógenos causadores de diarreia em neonatos, identificou-se um surto de Salmonella sp.. Uma das bezerras acometidas apresentou distensão abdominal do lado direito e morreu em menos de 24 horas. A necropsia revelou deslocamento do abomaso para a direita, acompanhado de abomasite, timpanismo abomasal (Figura 4), e enterite fibrinonecrótica (Figura 5) e hemorrágica. Observou-se que bezerras acometidas por diarreia tendem a apresentar retardo no esvaziamento abomasal e elevação do pH abomasal (superior a 5,0), condições que potencializam a sobrevivência de bactérias patogênicas, tais como Escherichia coli, Salmonella sp. e Clostridium perfringens, aumentando o risco de colonização patogênica do abomaso.



A distensão abomasal do lado esquerdo deve ser diferenciada do beber ruminal, causado pelo fechamento inadequado da goteira esofágica em bezerras, o que pode resultar em acidose ruminal e acidose D-láctica sistêmica. Ambas as condições causam desconforto, dor e redução do apetite no animal. Muitos dos fatores de risco para o beber ruminal estão igualmente associados à síndrome abomasal. O tratamento para o beber ruminal envolve a remoção do leite do rúmen por meio de sonda e a administração de bicarbonato de sódio.

Em outro caso clínico, uma bezerra com menos de um mês de vida desenvolveu beber ruminal recorrente durante episódio de diarreia, que culminou em sua morte. A necropsia revelou ruminite química e abomasite com áreas enfisematosas e necróticas (Figuras 6, 7 e 8). Diversos fatores podem ter contribuído para essa condição, como ambiente altamente contaminado, especialmente durante o período de chuvas intensas em um sistema tropical, e a alimentação com sucedâneo de baixa qualidade nos primeiros dias de vida. O beber ruminal recorrente também pode ter sido fator agravante, já que o uso de bicarbonato de sódio para controlar o pH ácido do rúmen pode ter afetado o pH do abomaso, promovendo o crescimento de bactérias patogênicas.

O pH abomasal excessivamente baixo é reconhecido como fator de risco para o desenvolvimento de úlceras abomasais. No entanto, o ambiente ácido também atua como barreira contra a colonização de certas bactérias no trato intestinal. Observa-se que bezerras alimentadas com leite apresentam baixo pH luminal pré-prandial (menor que 2,0), que aumenta rapidamente para aproximadamente 6,0 após a alimentação com leite ou seu substituto. Esse aumento do pH abomasal se mantém por até duas horas, retornando aos valores pré-prandiais em cerca de 7 a 9 horas.



Patógenos como Estreptococos, E. coli, e Clostridium tipos A, E, ou C, conhecidos por produzirem toxina β, foram isolados de bezerras com timpanismo abomasal. Essa toxina compromete as microvilosidades intestinais, as mitocôndrias e os capilares terminais da mucosa, levando à necrose progressiva da mesma e à invasão de bacilos gram-positivos nas áreas afetadas.

Um estudo de caso identificou o Clostridium perfringens tipo A como o agente causador de uma doença abomasal aguda grave que resultou na morte de 24 bezerras leiteiras. Os autores relataram que a fazenda usava antimicrobianos de forma inadequada em vez de estabelecer medidas de higiene e a melhora foi alcançada ao evitar a contaminação fecal do colostro (Van Kruiningen et al., 2009). Assim, o uso preventivo de antibióticos no início da vida das bezerras pode levar à disbiose, favorecendo o crescimento de bactérias potencialmente patogênicas. Além disso, a combinação de fatores de risco que diminuem a taxa de esvaziamento abomasal pode aumentar o risco de timpanismo, inflamação abomasal e até mesmo a morte.

Em caso documentado na literatura, um bezerro macho, nascido por cesariana e que havia recebido colostro dentro das primeiras 12 horas de vida, começou a apresentar, aos dois dias, diarreia pastosa de cor amarela e com sangue. O animal teve seu abdômen distendido e sensível ao toque e, apesar do tratamento intensivo que incluiu fluidoterapia venosa, administração de penicilina com ceftiofur e corticoides, morreu 48 horas após seu nascimento. Na necropsia, observou-se que o abomaso estava distendido, contendo leite coagulado e líquido sanguinolento, e as paredes do abomaso e omaso apresentavam espessamento e hemorragia. No duodeno proximal, foi detectada presença de enfisema, inflamação, mucosa hemorrágica e necrose, com isolamento de Clostridium perfringens positivo para cpb2, gene responsável pela codificação da toxina beta 2. Portanto, o diagnóstico exigiu, além da coleta de fragmentos alterados para exame histopatológico, a realização de análises microbiológicas do conteúdo abomasal e, especificamente para Clostridium perfringens, a identificação dos genes produtores de toxina.

2.Úlcera de abomaso

Durante um atendimento na Clínica de Ruminantes da UFMG, bezerras com cerca de 20 dias de vida manifestaram sintomas como diarreia profusa, perda de peso contínua, distensão abdominal significativa e grave desidratação. Observou-se também a presença de fezes escuras, indicativas de melena (Figura 9), e em alguns casos, acúmulo de gases na região abomasal, do lado direito do abdômen.

Apesar dos esforços terapêuticos, incluindo suporte e antibióticos, uma bezerra não resistiu e morreu. A necropsia revelou úlceras perfurantes no abomaso (Figura 10), com consequente extravasamento de leite para a cavidade abdominal. Situações similares foram observadas em outras duas bezerras que também não sobreviveram. Entre os fatores de risco identificados, destacam-se o aleitamento com leite destinado a venda adensado com sucedâneo até atingir 18% de sólidos e o uso prolongado de anti-inflamatórios não esteroidais durante 5 dias, no episódio de diarreia.

A elevada concentração de sólidos no leite pode reduzir a motilidade abomasal, danificando a parede do órgão, enquanto o uso excessivo de anti-inflamatórios pode comprometer a proteção da mucosa abomasal, contribuindo para o desenvolvimento do quadro clínico observado. É importante reconhecer que a combinação de múltiplos fatores de risco aumenta significativamente o risco de ocorrência da síndrome abomasal, sendo frequente a identificação de diversas manifestações da doença em uma mesma propriedade.




É IMPORTANTE RECONHECER QUE A COMBINAÇÃO DE MÚLTIPLOS FATORES DE RISCO AUMENTA SIGNIFICATIVAMENTE O RISCO DE OCORRÊNCIA DA SÍNDROME ABOMASAL, SENDO FREQUENTE A IDENTIFICAÇÃO DE DIVERSAS MANIFESTAÇÕES DA DOENÇA EM UMA MESMA PROPRIEDADE





O que fazer?

Embora o tratamento de casos graves de doenças abomasais seja fundamental, o prognóstico muitas vezes permanece incerto, e os animais tratados podem apresentar crescimento retardado comparativamente aos demais do grupo. Assim, a prevenção, por meio da minimização dos fatores de risco, surge como a abordagem mais eficaz.

O manejo de animais acometidos inclui a administração de antimicrobianos sistêmicos e protetores gástricos, sendo a hidratação venosa essencial, pois a oral pode ser menos efetiva devido à reduzida motilidade dos pré-estômagos. A vacinação contra Clostridium perfringens, especialmente o tipo A, nas vacas durante o pré-parto é uma estratégia preventiva, apesar de sua eficácia ainda ser tema de debate. Além disso, o impacto de diferentes concentrações de substituto de leite nas dietas de bezerras necessita de entendimento mais profundo e exige cautela na sua aplicação. Portanto, identificar e mitigar os fatores de risco é essencial para uma prevenção efetiva da síndrome abomasal.




JÚLIA GOMES DE CARVALHO – PhD em Ciência Animal e CEO da Zooagro Brasil

JOÃO PAULO SOARES ALVES – Mestrando em Ciência animal da UFMG

HENRIQUE PASSOS PEÇANHA VIEIRA – Doutorando em Ciência Animal da UFMG


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